Liminares livram drogarias de publicar relatório de transparência

By 6 de março de 2024Notícias

A divulgação do relatório foi prevista pelo Decreto nº 11.795, de 2023, que regulamentou a Lei de Igualdade Salarial

A Drogaria São Paulo e a Drogaria Pacheco conseguiram as primeiras liminares na Justiça que desobrigam o fornecimento de dado pessoais ao governo federal por meio do relatório de transparência salarial. As decisões também livram as empresas de terem que publicar esses relatórios nos sites e redes sociais.

A divulgação do relatório foi prevista pelo Decreto nº 11.795, de novembro de 2023, que regulamentou a Lei de Igualdade Salarial (nº 14.611 de 2023).

Empresas com cem ou mais funcionários têm até dia 8, conforme prazo estipulado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), para preencher ou retificar informações adicionais para a elaboração do relatório de transparência salarial. Os dados serão analisados pelo órgão e deve haver a devolução de um relatório para a publicação. O documento vai considerar também informações inseridas no eSocial.

O receio das empresas está em expor informações sensíveis à concorrência e em haver violação à Lei Geral de Proteção de Dados (LGDP), que prevê multa de até R$ 50 milhões por infração. Porém, caso a companhia não publique o relatório de transparência, fica sujeita a multa administrativa de até 3% da folha de salários, limitado a 100 salários-mínimos – hoje R$ 140 mil.

De acordo com a advogada Tonia Russomano, do escritório Andrade Maia, que assessora as drogarias nos processos, a argumentação principal é de que o Decreto nº 11.795 de 2023 e a Portaria do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) nº 3.714, de 2023, que regulamentam a lei, criaram obrigações novas. E como elas não estão previstas em lei, não precisariam ser cumpridas.

No caso do decreto, a nova obrigação imposta foi a divulgação dessas informações nos sites e redes sociais. Isso, segundo a advogada, ofenderia princípios constitucionais, como o do direito à privacidade e à intimidade, à livre concorrência, entre outros.

Já a portaria trouxe a obrigação de disponibilizar documentos como: quadro de carreira e plano de cargos e salários, critérios remuneratórios para acesso e progressão ou ascensão de empregados, entre outros. “São dados que são patrimônio jurídico da empresa, estratégia de negócio, informações sensíveis que, com a divulgação, podem ser repassadas aos concorrentes”, diz Tonia. Ela acrescenta que esses dados ainda podem expor funcionários porque, apesar da garantia de anonimidade, pode se identificar quem é, dependendo da área.

Ao analisar o pedido da Drogaria São Paulo, a juíza Sílvia Figueiredo Marques, da 26ª Vara Cível Federal de São Paulo, destacou que “da simples leitura da Portaria, verifica-se que, de fato, ela extrapolou a própria Lei. Também o Decreto, ao determinar a publicação nos sítios eletrônicos e redes sociais das empresas, do dito relatório da transparência, foi além do previsto na Lei”.

A juíza ainda ressaltou que o inciso II, do artigo 5º da Constituição garante que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. “Sob o pretexto de se regulamentar a Lei, não podem ser criadas novas obrigações”, afirma na decisão (processo nº 5004530-33.2024.4.03.6100).

Já na decisão a favor da Drogaria Pacheco, a juíza Frana Elizabeth Mendes, da 26ª Vara Federal do Rio de Janeiro, entendeu que a empresa tem razão em pedir. “A intenção do legislador ordinário é garantir a igualdade salarial entre homens e mulheres, e não se vislumbra motivo para que, ao menos em linha de princípio, tal fiscalização não possa ocorrer através de bancos de dados muito mais precisos, tais como o próprio e-Social, do FGTS, do CNIS e outros,

protegidos pelo devido sigilo.”

Para a juíza “não parece razoável exigir de empresas que forneçam todos os dados, relativos até mesmo a políticas trabalhistas que, tal como afirmado pela demandante, sequer são obrigatórias, bem como que tais dados sejam publicizados inclusive em redes sociais, mediante determinação constante de decreto e portaria, sem o devido respaldo legal, e sem que se demonstre que tais dados são necessários para que se efetive a igualdade salarial que a

legislação apontada pretende garantir”, diz (processo nº 5011649-62.2024.4.02.5101).

De acordo com a advogada Christiana Fontenelle, do Bichara Advogados, as decisões foram muito acertadas. “Ainda que o espírito da lei seja muito bom, de promover a igualdade salarial entre mulheres e homens, a forma como isso foi regulamentado por decreto e portaria, causou grande insegurança para as empresas”, diz.

Para Christiana, não se pode impor obrigação não prevista em lei, da divulgação de um relatório de transparência em seus sites e redes sociais, sem que exista ao menos um direito de rever esses dados. “Na lista do trabalho escravo, por exemplo, a empresa só é inserida depois de esgotada a chance de se defender e, mesmo assim, não é divulgada para o público em geral”, afirma a advogada.

No caso desse relatório, Christiana afirma que os dados podem abalar a imagem da empresa. “A empresa pode ser julgada de forma negativa como não sendo uma empresa plural e diversa. E uma vez publicada, essa imagem pode ficar abalada por um longo período, mesmo que depois se justifique que houve erro no relatório”, diz.

Professor da pós-graduação em direito do Trabalho da Universidade Mackenzie, o advogado Fabiano Zavanella, sócio do Rocha Calderón e Advogados Associados, afirma que realmente a regulamentação extrapolou o que diz a lei e trouxe muita exposição de dados sensíveis para as empresas ao determinar a publicação em seus sites e redes sociais. “O MTE tem acesso a essas

informações pelo eSocial e tem ao seu dispor ferramenta de investigação, de autuação fiscal e já pode agir caso entenda que alguma empresa tenha cometido discriminação de gênero”, diz Zavanella.

Além disso, destaca que podem vir informações discrepantes nos relatórios ao levar em consideração os cargos contidos na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), com as respectivas atribuições. No caso de advogados, por exemplo, existe um CBO único para a profissão. Por isso, poderá não ser possível distinguir se o profissional é júnior, pleno ou sênior. Como é uma classificação muito ampla, diz ele, pode causar distorções.

Entidades também questionam a obrigação. O Sindicato Intermunicipal das Indústrias do Vestuário do Paraná teve sua liminar negada pelo juiz Carlos Martins Kaminski, da 20ª Vara do Trabalho de Curitiba (PR). Para o juiz não cabe mandado de segurança sobre lei em tese (processo nº 0000124-79.2024.5.09.0029).

A outra ação é da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg). A entidade alega que a medida viola diversos direitos, inclusive das mulheres, com o risco de tornar públicos os salários. A ação foi distribuída para o juiz Guilherme Mendonça Doehler, da 10ª Vara Federal Cível de Belo Horizonte. Porém, ainda não há decisão (processo nº 6008977-76.2024.4.06.3800).

Procurados pelo Valor, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e a Advocacia-Geral da União (AGU) não retornaram até o fechamento.

 

*Reportagem originalmente publicada no jornal Valor Econômico no dia 06 de março de 2024.