Por Nei Calderon* e Daniel Alexandre Sarti**
Em recente julgamento, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negou provimento a um recurso interposto por uma instituição financeira (Agravo de Instrumento nº 2247827-91.2020.8.26.0000), sob a alegação de que, em razão da atual pandemia da Covid-19, cujos efeitos negativos atingem diretamente o faturamento de diversas empresas, seria possível a revisão de contrato bancário, com o escopo de se ver reduzido o valor das parcelas do financiamento.
Desde o início de 2020, o mundo encontra-se sob os efeitos da terrível pandemia do chamado Coronavírus, produzindo efeitos nefastos em diversas atividades econômicas, sejam estas consideradas essenciais ou não.
Consequentemente, os contratos celebrados, incluindo aqueles de natureza bancária, encontram-se sujeitos a uma situação fática de potencial descumprimento, já que inúmeras pessoas físicas ou jurídicas poderão deixar de honrar com as obrigações estabelecidas, notadamente em razão da falta de liquidez.
Com base nesta realidade, surge a importância de se avaliar qual a melhor alternativa para se resguardar não apenas as possibilidades do devedor, mas igualmente o direito creditório que a instituição financeira possui.
Os contratos bancários encontram-se regulados por um arcabouço legal significativo, incluindo normas internas produzidas pelo Conselho Monetário Nacional e o Banco Central do Brasil. Porém, destaca-se a regulamentação prevista em leis como o Código Civil e, no caso de pessoas físicas consideradas destinatárias finais de bens e serviços, as previsões do Código de Defesa do Consumidor.
Quando se discute o tema do direito dos contratos, chega-se a uma teoria já bastante conhecida pelos civilistas, que pode ser utilizada para se estabelecer um ponto de equilíbrio entre as partes contratantes. Ela é conhecida no campo do Direito Civil como sendo a “Teoria da Imprevisão”.
Segundo preceitua o renomado professor Arnaldo Rizzardo (“Contratos” – 12ª edição Revista e Atualizada, Editora Forense, pag. 127), a chamada Teoria da Imprevisão pode ser utilizada para a revisão ou a resolução do contrato “em certas circunstâncias especiais, como na ocorrência de acontecimentos extraordinários e imprevistos, que tornam a prestação de uma das partes sumamente onerosa”.
Ainda segundo o autor supracitado:
(…)“depreende-se que a razão justificativa da teoria da imprevisão está, como o nome indica, nos acontecimentos imprevistos, que acarretam a impossibilidade subjetiva, ou absoluta, ou mesmo a onerosidade excessiva da prestação. Daí, parte-se para a exoneração das obrigações assumidas, ou a atenuação de suas consequências. Os princípios da equidade e da boa-fé, aliados às exigências da regra moral e da noção do direito, imprescindíveis nos relacionamentos negociais, formam o substrato jurídico do instituto. Assume relevância o ambiente objetivo existente ao tempo da celebração, modificando-se por completo no decurso da execução do contrato, agravando os deveres de uma das partes, ou minimizando ao máximo a prestação estipulada”. (“Contratos” – 12ª edição Revista e Atualizada, Editora Forense, pag. 129).
Em se tratando de contratos bancários sujeitos a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal nº 8.078/90), referida teoria estaria prevista no inciso V do art. 6º da norma, cujo teor estabelece que é direito do consumidor ver modificadas as cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais, bem como a possibilidade de revisão em razão de algum fato superveniente que tornem as obrigações excessivamente onerosas.
Vale dizer, diante de uma situação considerada excepcional ou extraordinária, cuja consequência seja a elevação da onerosidade ou a impossibilidade de se cumprir uma determinada obrigação contratual, abre-se a garantia de se buscar a revisão ou até a rescisão do negócio, haja vista que uma das partes não poderá honrar o contrato como o faria em situações normais.
Porém, adentramos na necessidade de se resguardar um verdadeiro equilíbrio contratual e não simplesmente o encerramento do negócio, já que esta teoria não pode ser empregada, nos tempos atuais, para simplesmente favorecer apenas uma das partes, em detrimento da outra.
Ademais, tal teoria deve ser aplicada com ressalva na hipótese de inadimplência verificada antes dos acontecimentos pertinentes a pandemia, já que tal situação revela que o descumprimento da obrigação contratual não guarda relação direta com os efeitos da epidemia viral.
Ademais, os próprios tribunais, como é o caso do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, estão adotando uma postura de cautela quanto a alegação de que a pandemia, por si só, abre a possibilidade para o descumprimento de quaisquer obrigações, incluindo aquelas de natureza bancária. Tomemos o exemplo do julgado do Agravo de Instrumento nº 2111666-74.2020.8.26.0000, exarado pela corte bandeirante, que deferiu o pedido de suspensão da exigibilidade de obrigações contraídas junto à instituição financeira, em razão dos efeitos deletérios provocados pela pandemia da covid 19.
Diante disso, não restam dúvidas de que todas as cautelas devem ser adotadas, tanto por parte daqueles que se encontram em estado de inadimplência em face de um contrato bancário, como por parte das instituições financeiras detentoras de um crédito sujeito a cobrança.
A atual pandemia não estabeleceu uma autorização tácita para o descumprimento generalizado das obrigações bancárias e, desta forma, a teoria da imprevisão deverá ser aplicada e interpretada de forma ponderada.
* Nei Calderon é Doutorando em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA/ PR. Mestre em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP; Especialista em Gestão de Serviços Jurídicos pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP). Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas em Ciências Políticas e Jurídicas (IPOJUR). Militante nas áreas de direito bancário, recuperação de crédito e recuperação de empresas. É sócio fundador do Rocha, Calderon e Advogados Associados.
** Daniel Alexandre Sarti é Coordenador de Recuperação de Crédito do Rocha, Calderon e Advogados Associados. Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bacharel em Direito pela Universidade São Judas Tadeu. Advogado e Consultor Jurídico com ampla experiência no acompanhamento e condução de processos judiciais envolvendo temas de direito bancário, recuperação judicial e falência.